segunda-feira, 10 de abril de 2017

A bruxa

“Cecília
Pelos meados do século dezasseis, uma mulher chamada Cecília, atraiu as atenções em Lisboa. Possuía a arte de modular a sua voz de tal forma que esta parecia sair do seu cotovelo, às vezes, outras vezes dos seus pés, ou ainda de um sítio que seria impróprio nomear. Ela mantinha uma conversa com um ser invisível... Que respondia a todas as suas perguntas. A mulher foi reputada de bruxa e de possessa do diabo; contudo, como graça especial, em lugar de ser queimada, foi apenas exilada para sempre na ilha de S. Tomé, onde morreu em paz.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 81

Assim como, durante a Idade Média, as bruxas eram caçadas, condenadas, queimadas ou, como no caso de Cecília, simplesmente exilada para sempre, no contexto da ditadura em Portugal, aquelas mulheres que eram consideradas desonradas, “bruxas”, eram condenadas ao Convento, onde seriam exiladas para sempre, castigadas por seus feitiços. A mulher que se expressa livremente, que demonstra sua sexualidade, que busca por independência ou simplesmente recusa as amarras sociais e o seu destino de freira ou mãe de família, agindo então “como um homem”, é julgada e condenada.

“Ralde  (Maria de la)
Bonita bruxa presa com a idade de dezoito anos. Começara a praticar a sua arte aos dez anos e foi levada ao Sabbat pela primeira vez pelo bruxo Marissans. Depois da morte deste, o próprio diabo a levou à Assembleia, onde, segundo o depoimento de Marie, tomou a forma duma árvore... mas aparecendo às vezes com a forma dum homem vulgar, ora encarnado, ora preto. Marie nunca beijou o diabo mas viu como isso se fazia. Acrescentou que gostava muito do Sabbat porque <<parecia mesmo um casamento>>. As bruxas ouviam música tão suave que era como se estivessem no céu... e o diabo convenceu-as de que o fogo que arde eternamente não era real, mas artificial.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 77

“Em Portugal a maior parte das mulheres não só e apenas são <<escravas>> do homem, como desempenham <<alegremente>>, convictamente, o seu papel de mulher-objecto e não é necessário ser-se adúltera para se ser <<apedrejada>>, aniquilada... basta que ela surja e fale como <<um homem>>.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 317

A mulher, perversa, é aquela que exibe seu corpo, usando-o para enfeitiçar os homens. É aquela que não se importa com as convenções sociais, com os comportamentos que lhe são impostos.

“Era perversa:
dormia toda nua, os peitos soltos e brandos muito brancos e expostos tal como os seus mamilos largos, róseos, distendidos.
Durante o dia andava em casa com as blusas desabotoadas e sentava-se de qualquer maneira com os fatos a subirem-lhe sempre a meio das coxas, deixando antever entre as pernas uma escuridão macia, amolentada na sua meia penumbra.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 165

E o homem, ao mesmo tempo, é a vítima, o enfeitiçado, incapaz de se controlar perante tamanha tentação, e aquele que castiga, que exila, que decide o que deve ser feito daquela mulher.

“<<Tens de deixar esta casa – disse-lhe ele numa voz neutra, monocórdica – não podemos continuar a viver todos juntos na mesma casa depois do que se passou. Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, eu sou homem; sou homem e tu és provocante, perversa. És perversa. Uma mulher sem vergonha, sem pudor. Não te quero ver mais, enojas-me, repugnas-me, envergonhas-me. Tu percebias, sei que percebias, que sabias como me punhas. Eu sou homem minha puta>>.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 167

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