segunda-feira, 10 de abril de 2017

Novas Cartas Portuguesas e Dictionnaire Infernal

Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel BarrenoMaria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, as três Marias, é de 1974, mas traz um forte paralelo com uma obra de 1818, Dictionary of Witchcraft (Dictionnaire Infernal, no título original), de Collin de Plancy. A relação entre o papel da mulher durante da ditadura em Portugal, e o da mulher do século XIX, torna-se mais nítida ao levarmos em questão a figura da bruxa e outros elementos religiosos, todos usados para configurar a visão conservadora e opressora sobre a mulher. A citação direta de trechos do Dictionary of Witchcraft, juntamente com as confissões de mulheres do convento, numa espécie de oração ou cântico, além da análise de outras cartas que denunciam a situação feminina em Portugal, estabelecem essa estreita relação e levantam outras questões, como a falta de liberdade sexual e intelectual das mulheres, e o destino inevitável de serem mães, esposas ou freiras.

Contexto histórico

Dictionary of Witchcraft, com o título original de Dictionnaire Infernal, e Dicionário Infernal, em português, é um livro escrito por Jacques Auguste Simon Collin de Pancy, publicado em 1818 na França, mas foi traduzido em diversos outros idiomas e alcançou maior popularidade quando, em 1863 ganhou ilustrações de Louis Breton. O livro trata de superstições, magia e, o que este trabalho busca abordar, figuras muito trabalhadas especialmente pela religião Católica, como a existência das bruxas e dos demônios.  Na Idade Média, e com a ascensão da Igreja Católica, houve uma grande mobilização contra os chamados “inimigos da Igreja”. Muitas pessoas eram presas e executados em público por acusações de bruxaria e feitiçaria. Além disso, a crença de demônios que se apossavam dos corpos mais frágeis era forte e muita marcada. Embora a famosa “Caça às bruxas” tenha se iniciado justamente nesse período, em especial no século XV, ela continuou ganhando força nos séculos seguintes, tendo seu apogeu principalmente no século XVIII. O livro foi publicado quando todas essas crenças eram muito fortes, e não simples superstições.

Novas Cartas Portuguesas, por outro lado, é publicado num contexto muito diverso. Em 1974, em Portugal, a Ditadura trazia uma série de limitações e repressões não só políticas, mas de crenças, de comportamento, entre outros. O livro surge não só como um grito contrário a esse momento político em Portugal, mas contra a situação da mulher no país. A Ditadura impedia outros avanços, como a Revolução sexual, com início em 1960, em outros países do mundo. As três Marias unem-se e publicam um livro que contém uma série de cartas, que vão desde confissões até manifestações que se aproximam da poesia, denunciando a situação da mulher em Portugal. Usam como base o livro Cartas Portuguesas (Les Lettres Portugaises), publicado na França em 1669, que contém as cartas de Soror Mariana, uma freira que envia cartas de amor a um francês. Além das cartas de Mariana, o livro Novas Cartas Portuguesas também apresenta escritos de outras mulheres, sejam freiras ou esposas e mães, conscientes ou não da situação de repressão que se encontram, que acabam denunciando o poder do Estado, da sociedade e da Igreja em subjugá-las e oprimi-las.

Apesar de aproximadamente um século de diferença entre as obras, fica claro que em ambos os casos, a mulher continua sendo vista como submissa, tendo desde o nascimento o destino traçado: seguir a vocação religiosa, ou constituir família, assumindo apenas o papel de mãe e esposa devotada. As mulheres que, eventualmente, saíam desse padrão ou se rebelavam de qualquer forma, eram vistas como bruxas e feiticeiras. Aquelas que expressavam qualquer sexualidade eram tachadas de perversas ou possuídas por demônios. Suas manifestações sexuais envolviam o próprio Diabo e, vítimas de abuso, toda a culpa era destituída do homem, sendo atribuída à própria mulher, que o enfeitiçava com seu corpo ou seu jeito de ser. É importante então traçar um paralelo entre duas épocas completamente diferentes, mas ligadas fortemente pelos julgamentos religiosos e superstições, usados para justificar parte da opressão contra a mulher, e atentar à figura da bruxa, que representa a mulher que se rebela contra as imposições ao mundo feminino.

Ilustrações de Louis Breton










O Convento

O convento tem singular importância na questão feminina em ambos os contextos. É quase que uma entidade, imposta desde jovem àquela mulher que, de alguma forma, não servirá para o casamento. É o destino da menina que é arrancada da casa dos pais e confinada no convento, onde ela deve se submeter a uma série de restrições e se adaptar, mas em alguns casos, como o de Mariana, só faz crescer a revolta e o sofrimento das que ali foram abandonadas por diversos motivos, contra sua vontade.

“Mas de ti que é feito minha Mariana? Que resta de ti, aí de clausura posta à força? Recordarei sempre teus gritos, teu desespero, tua raiva, tua recusa enlouquecida em aceitares o convento, teu ódio; depois perante o inevitável, teu mutismo, teu aceitar dos factos com altivez, o desprezo por todos a subir-te aos olhos e o sorriso cortante a paramentar-te de ironia e a boca em jeito de vingança...”
Novas Cartas Portuguesas, 1972,  p. 170

A mulher tem de enfrentar o seu destino, que é inevitável e cruel. É vista como frágil, incapaz e sempre submissa, seja ao homem, no casamento, ou à Instituição do Convento. Não tem liberdade intelectual, em casos extremos sequer aprende a ler e a escrever, pois não será necessário, já que seu papel é única e exclusivamente doméstico, cuidando da casa, dos filhos, do marido; lavando, cozinhando, costurando ou fazendo orações.

“Tu a quem sempre dei bons exemplos, te levei à igreja e se não foste à escola foi por teima do teu pai que é de opinião dele as raparigas não terem precisão de saber ler – e é o teu pai quem manda –, pois o destino das mulheres é este, minha filha, e temos de levar a nossa cruz e se pelo menos sabes ler algumas coisinhas e fazer o teu nome fui eu que to ensinei às escondidas...”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 314

“Que desgraça se nascer mulher! Frágeis, inaptas por obrigação, por casta, obedientes por lei a seus donos, senhores sôfregos até de nossos males.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p.170

“O teu pai bem disse logo que soube que eras rapariga: << em má hora nasce, que não nos serve para nada, uma mulher só vem dar trabalho à gente>>.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 312

Além de ser negado à mulher o direito ao conhecimento, à liberdade intelectual, suas particularidades e personalidade também são neutralizadas, especialmente pelo Convento, que treina as mulheres para que se tornem “honradas”, obedientes, silenciosas e sem pecados. Entre as páginas 75 e 85 de Novas Cartas Portuguesas, juntamente com trechos do Dictionary of Witchcraft, é mostrada a situação da mulher no convento. As passagens são como um coro de mulheres, freiras, não só numa oração, mas também como uma espécie de juramento diante das autoridades, no caso a Madre Abadessa. É, ainda, um pedido de socorro, de mulheres desamparadas e confusas, que são mandadas da casa dos pais, presas e reprimidas, confusas especialmente com os próprios corpos, que não deveriam ter.  Diversas vezes é repetido o questionamento: “Madre Abadessa, e o que seremos sem corpo E com cavaleiro?”. Sem corpo, a sexualidade feminina é completamente reprimida, especialmente no convento, onde a única paixão que podem ter é o Senhor.

O Diabo e a possessão

O Diabo adquire diferentes conotações: ora como aquele que entra no quarto das moças, para tentá-las e levá-las ao pecado, ora como o responsável por tirar a vida de mulheres indignas. A mulher que tinha relações sexuais, certamente as tinha com o próprio Diabo. O Diabo pode ser interpretado não só como o homem com quem a mulher se relaciona, como também a própria sexualidade, que é sempre dada como uma tentação, um pecado, algo perigoso e que deve ser evitado e reprimido.

“Elisabeth de Hoven
Freira num convento de Hoven, no século doze. Encontrou um dia o diabo no seu quarto. Reconhecendo-o pelos cornos, foi direita a ele e deu-lhe uma estalada que o atirou pelos ares... Noutra ocasião, julgou que um homem tinha conseguido entrar no convento, mas quando depois se convenceu de que tinha estado tratando com o diabo, a irmã Elizabeth exclamou: <<Oh! Se tivesse logo percebido isso, que bofetada eu lhe teria dado!>>”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 76

No Convento, essas histórias eram repetidas frequentemente no intuito de alertar as freiras que não deviam deixar o diabo entrar em seus quartos. E, caso cruzassem com ele, deviam fazer como Elisabeth, dando-o bofetadas, ao invés de se deixar levar por ele, que representa a tentação e o desejo.

“Gabriellle de Strées
Amante de Henrique IV, morreu em 1599. Sabe-se que ela tentou casar com o rei. Estava grávida pela quarta vez, e vivia na casa de Zamet, famoso homem da finança... Quando passeava no jardim, teve um grave ataque de coração. Passou uma má noite, e no dia seguinte foi acometida de tão assustadoras convulsões que ficou completamente negra e a sua boca torceu-se tanto que ficou na nuca. Expirou no meio de grandes tormentos e horrorosamente desfigurada... Várias pessoas atribuíram ao diabo este acto caridoso. Diziam que o diabo a estrangulara para evitar um escândalo e mais incómodos.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 80

É então que o Diabo assume o papel de carrasco, aquele responsável por tirar a vida daquela mulher desonrada, que envergonhava a todos, provavelmente até a ele. É carregado de ironia o fato de ser um ato caridoso, quando é praticado pelo próprio Diabo.
A possessão também é encarada de maneira parecida quanto à repressão sexual. A mulher que expressa sua sexualidade e seus desejos é vista como possuída, assim como aquela que expressa sua opinião e vai contra o que lhe é imposto.

“Maillat (Louise)
Jovem demoníaca que viveu em 1598. Tendo perdido o uso dos seus membros foi levada, para exorcismo, à Igreja do Sagrado Redentor. Verificou-se que ela estava possessa de cinco demónios chamados lobo, gato, cão, boneca e grifo. Dois demónios saíram-lhe pelo nariz sob a forma de bolas do tamanho de um punho, uma vermelha como o fogo e a outra, o gato, completamente preta. Os outros demónios deixaram-na menos violentamente. Uma vez fora dela, os demónios giraram à volta do fogo e desapareceram. Descobriu-se que Françoise Secretaire fizera engolir os demónios pela rapariga escondendo-os numa côdea de pão cor de estrume.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 78

A bruxa

“Cecília
Pelos meados do século dezasseis, uma mulher chamada Cecília, atraiu as atenções em Lisboa. Possuía a arte de modular a sua voz de tal forma que esta parecia sair do seu cotovelo, às vezes, outras vezes dos seus pés, ou ainda de um sítio que seria impróprio nomear. Ela mantinha uma conversa com um ser invisível... Que respondia a todas as suas perguntas. A mulher foi reputada de bruxa e de possessa do diabo; contudo, como graça especial, em lugar de ser queimada, foi apenas exilada para sempre na ilha de S. Tomé, onde morreu em paz.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 81

Assim como, durante a Idade Média, as bruxas eram caçadas, condenadas, queimadas ou, como no caso de Cecília, simplesmente exilada para sempre, no contexto da ditadura em Portugal, aquelas mulheres que eram consideradas desonradas, “bruxas”, eram condenadas ao Convento, onde seriam exiladas para sempre, castigadas por seus feitiços. A mulher que se expressa livremente, que demonstra sua sexualidade, que busca por independência ou simplesmente recusa as amarras sociais e o seu destino de freira ou mãe de família, agindo então “como um homem”, é julgada e condenada.

“Ralde  (Maria de la)
Bonita bruxa presa com a idade de dezoito anos. Começara a praticar a sua arte aos dez anos e foi levada ao Sabbat pela primeira vez pelo bruxo Marissans. Depois da morte deste, o próprio diabo a levou à Assembleia, onde, segundo o depoimento de Marie, tomou a forma duma árvore... mas aparecendo às vezes com a forma dum homem vulgar, ora encarnado, ora preto. Marie nunca beijou o diabo mas viu como isso se fazia. Acrescentou que gostava muito do Sabbat porque <<parecia mesmo um casamento>>. As bruxas ouviam música tão suave que era como se estivessem no céu... e o diabo convenceu-as de que o fogo que arde eternamente não era real, mas artificial.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 77

“Em Portugal a maior parte das mulheres não só e apenas são <<escravas>> do homem, como desempenham <<alegremente>>, convictamente, o seu papel de mulher-objecto e não é necessário ser-se adúltera para se ser <<apedrejada>>, aniquilada... basta que ela surja e fale como <<um homem>>.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 317

A mulher, perversa, é aquela que exibe seu corpo, usando-o para enfeitiçar os homens. É aquela que não se importa com as convenções sociais, com os comportamentos que lhe são impostos.

“Era perversa:
dormia toda nua, os peitos soltos e brandos muito brancos e expostos tal como os seus mamilos largos, róseos, distendidos.
Durante o dia andava em casa com as blusas desabotoadas e sentava-se de qualquer maneira com os fatos a subirem-lhe sempre a meio das coxas, deixando antever entre as pernas uma escuridão macia, amolentada na sua meia penumbra.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 165

E o homem, ao mesmo tempo, é a vítima, o enfeitiçado, incapaz de se controlar perante tamanha tentação, e aquele que castiga, que exila, que decide o que deve ser feito daquela mulher.

“<<Tens de deixar esta casa – disse-lhe ele numa voz neutra, monocórdica – não podemos continuar a viver todos juntos na mesma casa depois do que se passou. Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, eu sou homem; sou homem e tu és provocante, perversa. És perversa. Uma mulher sem vergonha, sem pudor. Não te quero ver mais, enojas-me, repugnas-me, envergonhas-me. Tu percebias, sei que percebias, que sabias como me punhas. Eu sou homem minha puta>>.”
Novas Cartas Portuguesas, 1972, p. 167

A repressão à mulher

O convento, o Diabo e as possessões, e a figura da bruxa, são importantes elementos que, juntamente, formam um círculo de repressão à mulher, diretamente ligados: o Diabo é responsável pelas tentações, por possuir a mulher, que se torna perversa, bruxa, e então é devidamente condenada ao Convento. Tanto no século XIX, no contexto do Dictionary of Witchcraft, quanto no século XX, no contexto da Ditadura Militar em Novas Cartas Portuguesas, a mulher tem sua sexualidade, intelectualidade e poder de escolha reprimidos, baseado em regras tanto sociais quanto religiosas, que definem desde o nascimento o seu destino e o seu papel na sociedade, a qual ela não pode fugir. Mas, ao contrário do Dictionary of Witchcraft, que buscava apenas relatar essas crenças e superstições, revelando a crueldade de um tempo em relação à mulher, Novas Cartas Portuguesas é um grito de revolta e, ao mesmo tempo, dá luz a várias questões que vinham sendo encobertas, como o papel da mulher na sociedade, o seu constante sofrimento e a importância do feminismo. 

Entrevista Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7BnxL7CbwG4

Referências Bibliográficas

A arte de Dictionnaire Infernal. The Vintage Gallery. 2014. Disponível em: http://thevintagegallery.blogspot.com.br/2014/09/a-arte-de-dictionnaire-infernal_14.html
ANGELIN, Rosângela. A “caça às bruxas”: uma interpretação feminista. Revista Espaço Acadêmico, número 53. Outubro, 2005.
BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas. Lisboa. 1972.
CAZOTTE, Jacques. O diabo amoroso. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 
LEITE, Marcio Peter de Souza. O Deus odioso. O diabo amoroso: psicanálise e representação do mal. 1991.
Novas Cartas portuguesas, 40 anos depois. Disponível em: http://www.novascartasnovas.com/

Novas Cartas Portuguesas e Dictionnaire Infernal

Novas Cartas Portuguesas , de  Maria Isabel Barreno ,  Maria Teresa Horta  e  Maria Velho da Costa , as três Marias, é de 1974, mas traz um...